Como “Zona de Interesse” nos convida a pensar sobre a natureza escorregadia do mal.

Quando assisti pela primeira vez a Zona de Interesse de Jonathan Glazer, o que imediatamente chamou minha atenção foi todo o horror retratado no filme, de maneira naturalista. Os personagens principais, Rudolf Höss, o comandante nazista de Auschwitz na vida real, sua esposa, Hedwig, e seus filhos, levam uma vida abundante construída a partir dos recursos do povo judeu, mantidos longe de nossa vista no campo de concentração, bem ao lado da casa que a família Höss transformou em seu lar.

Dado esse contexto, era natural que cada palavra ou gesto vindo desse casal produzisse em mim sinais físicos de repulsa. Na superfície, esta é uma história de pessoas vis cujas ações devemos, com razão, condenar.

Bem no início, em uma cena, Hedwig, interpretada pela brilhante Sandra Hüller, veste um luxuoso casaco de pele que pertencera a uma mulher que, presumimos, acabara de ser mantida prisioneira. A personagem de Hüller encontra um batom no bolso do casaco e o experimenta, tudo com tanta naturalidade, demonstrando sua indiferença à origem dos objetos.

Mais tarde, a vemos orgulhosamente mostrando à mãe o opulento jardim que cultivou ao redor da casa como forma de tornar o lugar acolhedor, com as flores exuberantes, de cores vivas, simbolizando uma família que também deveria florescer e prosperar.

Na cama, Hedwig e seu marido se divertem imitando o som de porcos, como alusão repugnante aos judeus.

Conforme os eventos avançam e Rudolf conta à esposa que foram ordenados a se mudar, em uma cena que mostra ainda mais o senso de pertencimento de Hedwig ao ambiente que ela criou, esta anuncia veementemente sua resolução de não sair da casa senão à força. É um momento poderoso quando entendemos a extensão de sua ambição em cercar a si mesma e sua família com o que há de melhor.

As chaminés ardentes ao fundo, como prenúncios sombrios da morte, ou os gritos angustiantes das pessoas sofrendo nas proximidades, nada disso importa; são apenas visões e sons que ela, e quase todos os outros, aparentemente escolhem ignorar.

No entanto, algumas pessoas percebem o que está acontecendo.

Primeiro, quando a mãe de Hedwig vem visitá-la, aquela parece contente com o que sua filha consquistou ao projetar uma casa para sua família. Logo, porém, a mulher mais velha ouve tiros, gritos, e pela janela, à noite, ela vê o fogo nos prédios ao lado.

Os filhos de Hedwig, especialmente os mais novos, são capazes de perceber mais nitidamente seu entorno. Um dos meninos ouve à noite o estranho zumbido de maquinaria e o imita, repetindo seu som com a boca. Em outra ocasião, ele ouve um guarda gritando, e vai até a janela para ver o que está acontecendo; então, chocado, ele murmura para si mesmo, com uma expressão triste no rosto: “nunca mais faça isso”.

Se os últimos exemplos, de pessoas se conscientizando dos atos abomináveis perpetrados em um cenário mundano, fornecem um vínculo com as sensibilidades humanas da plateia, permitindo que nos solidarizemos com os personagens que, espantados, testemunham o que passa despercebido pela maioria, o experimento de Glazer vai além.

Aqui cabe uma citação em que o cineasta explica sua visão para o filme:

“Para mim, este não é um filme sobre o passado. É uma tentativa de ser sobre o agora, e sobre nós e nossa semelhança com os perpetradores, não com nossa semelhança com as vítimas.”

Portanto, mais do que a mensagem mais óbvia, uma que poderia facilmente apenas nos deixar aterrorizados pelo que experimentamos, jurando para nós mesmos que nunca fomos nem seríamos como aquelas pessoas horríveis na tela, Glazer entrega uma mensagem mais astuta, mais radical. Ele nos faz perceber que, dadas as circunstâncias, poderíamos ser como os Höss, prosperando às custas dos outros; normalizando a divisão entre um povo supostamente mais forte e um mais fraco, quem quer que sejam; perpetrando violência com ações, assim como palavras. Ele nos traz um aviso não apenas sobre o quão fácil é fechar os olhos para qualquer tipo de injustiça, mas também, assim como a família Höss, o quão conveniente é usar o poder para se alimentar da desgraça das pessoas se deixarmos nossos interesses falarem mais alto do que os de qualquer outra pessoa.

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