Como “Zona de Interesse” nos convida a pensar sobre a natureza escorregadia do mal.

Quando assisti pela primeira vez a Zona de Interesse de Jonathan Glazer, o que imediatamente chamou minha atenção foi todo o horror retratado no filme, de maneira naturalista. Os personagens principais, Rudolf Höss, o comandante nazista de Auschwitz na vida real, sua esposa, Hedwig, e seus filhos, levam uma vida abundante construída a partir dos recursos do povo judeu, mantidos longe de nossa vista no campo de concentração, bem ao lado da casa que a família Höss transformou em seu lar.

Dado esse contexto, era natural que cada palavra ou gesto vindo desse casal produzisse em mim sinais físicos de repulsa. Na superfície, esta é uma história de pessoas vis cujas ações devemos, com razão, condenar.

Bem no início, em uma cena, Hedwig, interpretada pela brilhante Sandra Hüller, veste um luxuoso casaco de pele que pertencera a uma mulher que, presumimos, acabara de ser mantida prisioneira. A personagem de Hüller encontra um batom no bolso do casaco e o experimenta, tudo com tanta naturalidade, demonstrando sua indiferença à origem dos objetos.

Mais tarde, a vemos orgulhosamente mostrando à mãe o opulento jardim que cultivou ao redor da casa como forma de tornar o lugar acolhedor, com as flores exuberantes, de cores vivas, simbolizando uma família que também deveria florescer e prosperar.

Na cama, Hedwig e seu marido se divertem imitando o som de porcos, como alusão repugnante aos judeus.

Conforme os eventos avançam e Rudolf conta à esposa que foram ordenados a se mudar, em uma cena que mostra ainda mais o senso de pertencimento de Hedwig ao ambiente que ela criou, esta anuncia veementemente sua resolução de não sair da casa senão à força. É um momento poderoso quando entendemos a extensão de sua ambição em cercar a si mesma e sua família com o que há de melhor.

As chaminés ardentes ao fundo, como prenúncios sombrios da morte, ou os gritos angustiantes das pessoas sofrendo nas proximidades, nada disso importa; são apenas visões e sons que ela, e quase todos os outros, aparentemente escolhem ignorar.

No entanto, algumas pessoas percebem o que está acontecendo.

Primeiro, quando a mãe de Hedwig vem visitá-la, aquela parece contente com o que sua filha consquistou ao projetar uma casa para sua família. Logo, porém, a mulher mais velha ouve tiros, gritos, e pela janela, à noite, ela vê o fogo nos prédios ao lado.

Os filhos de Hedwig, especialmente os mais novos, são capazes de perceber mais nitidamente seu entorno. Um dos meninos ouve à noite o estranho zumbido de maquinaria e o imita, repetindo seu som com a boca. Em outra ocasião, ele ouve um guarda gritando, e vai até a janela para ver o que está acontecendo; então, chocado, ele murmura para si mesmo, com uma expressão triste no rosto: “nunca mais faça isso”.

Se os últimos exemplos, de pessoas se conscientizando dos atos abomináveis perpetrados em um cenário mundano, fornecem um vínculo com as sensibilidades humanas da plateia, permitindo que nos solidarizemos com os personagens que, espantados, testemunham o que passa despercebido pela maioria, o experimento de Glazer vai além.

Aqui cabe uma citação em que o cineasta explica sua visão para o filme:

“Para mim, este não é um filme sobre o passado. É uma tentativa de ser sobre o agora, e sobre nós e nossa semelhança com os perpetradores, não com nossa semelhança com as vítimas.”

Portanto, mais do que a mensagem mais óbvia, uma que poderia facilmente apenas nos deixar aterrorizados pelo que experimentamos, jurando para nós mesmos que nunca fomos nem seríamos como aquelas pessoas horríveis na tela, Glazer entrega uma mensagem mais astuta, mais radical. Ele nos faz perceber que, dadas as circunstâncias, poderíamos ser como os Höss, prosperando às custas dos outros; normalizando a divisão entre um povo supostamente mais forte e um mais fraco, quem quer que sejam; perpetrando violência com ações, assim como palavras. Ele nos traz um aviso não apenas sobre o quão fácil é fechar os olhos para qualquer tipo de injustiça, mas também, assim como a família Höss, o quão conveniente é usar o poder para se alimentar da desgraça das pessoas se deixarmos nossos interesses falarem mais alto do que os de qualquer outra pessoa.

Na Neblina (В тумане), 2012

Um homem russo falsamente acusado de colaboração com os alemães durante a segunda Guerra procura se ver livre deste estigma. Pronto. É basicamente este o enredo de Na Neblina. O que o diretor Sergei Loznitsa faz aqui mais do que contar uma história, porém, é transportar-nos para um clima de incerteza e desonra, e assim, sentirmos quase que na pele o drama do protagonista.

O filme abre-se com vários homens, partisans, sendo levados à forca pelas autoridades por se rebelarem contra a ocupação alemã. A câmera se move livre e quase desinteressada como se víssemos tudo pelos olhos de algum curioso no lugar. Desde já somos convidados a habitar entre aquelas pessoas comuns como se um deles fossemos.

A partir daí corta-se para a trama principal, em que o protagonista Sushenya (Vladimir Svirskiy), algum tempo depois de ter sido condenado junto com outros homens, e logo depois solto, é visitado por um antigo conhecido, Burov (Vladislav Abashin), que, assim como todo mundo, acredita ter Sushenya se aliado aos alemães como condição de soltura da prisão, e, portanto, deseja fazer a justiça pelas próprias mãos. A realidade é mais complicada, como vemos depois.

Seguindo vários flashbacks, vamos conhecendo os percalços por que esses personagens passaram, assim como cada vez mais um clima de terror e de incerteza se vai criando. Isso se dá pela forma como Loznitsa organiza suas cenas, não com um foco narrativo rígido, em que veríamos uma história bem elaborada sendo contada, mas antes temos várias cenas servindo para adicionar camadas ao nosso conhecimento sobre a experiência de se viver sob uma ocupação. Em todas as cenas há uma tensão dormente por não sabermos de onde virá o inimigo, se virá, e assim uma longa caminhada pela floresta ou pelas ruas, se poderiam parecer triviais, sob este auspício do opositor, tornam-se temerárias.

Ao mesmo tempo, a fotografia, que se empenha por deixar os cenários e os personagens tão reais quanto possível, dá-nos uma visão belíssima daqueles locais e pessoas, contrastando feiúra (moral, ética etc) e beleza (estética), realidade e pesadelo, contribuindo com essa falta de estabilidade para nos convencer da atmosfera de inquietação e dúvida em que vivem os personagens.

Ultimamente, carregado pela culpa imposta por outros enquanto essencialmente inocente, o protagonista nos faz refletir sobre a arma mais poderosa a ser usada contra um homem: não tirando a sua vida, mas destruindo a sua honra, a ponto de nem mesmo as pessoas mais próximas confiarem mais em você.

Ao mostrar também as várias decisões diferentes que os personagens tomam frente às situações difíceis, uma questão moral se nos apresenta: a guerra muda tanto um homem assim? Ou o caráter corrompido sempre fez parte dele?

Com um estilo próprio, lento, sim, mas não menos envolvente por isso, esse Sergey Loznitsa nos propõe essas ponderações enquanto nos presenteia com um filme que é uma experiência bela e única.
★★★

Andando (歩いても 歩いても, Aruitemo aruitemo), 2008

“Andando” é o primeiro filme que vejo do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda, cujo delicado tratamento de dramas familiares recebe muitas comparações ao de Yasujiro Ozu, e aqui realmente a influência se faz notar.

Trata-se de um retrato compassivo de um dia de uma família japonesa em que os membros se reúnem a casa dos pais pelo aniversário da morte do filho mais velho. Alguns anos já se passaram desde sua morte, então aqui vemos não as erupções de tristeza do luto recente, mas as quietas manifestações de uma perda, assim como as mágoas antigas que cada membro da família ainda nutre uns contra os outros, que são declaradas em forma velada, sob um resquício de boas maneiras.

Não é, portanto, um filme em que embates se vão acumulando até um estouro climático em que cada personagem põe seus ressentimentos para fora, gerando catarse; ao invés, vemos um cenário familiar, que, seguindo adiante, permanece estagnado.

O diretor nos apresenta um cotidiano da forma como este se passaria na vida real, sem focar a atenção do espectador em detalhes precisos, mas mostrando em geral em planos abertos todos os membros em um só lugar enquanto estes interagem e nós precisamos ativamente buscar um significado em cada palavra que eles falam, sendo o peso de cada comentário ajudado pela memória do que foi dito antes.

É um filme cheio de nuances e sutilezas, que, se ao espectador desinteressado possa parecer que nada acontece, àquele que investe sua atenção às várias dimensões daquilo que os personagens dizem um para o outro acharão ali um cenário rico em humanidade. Há um pouco de tudo aqui do que se espera de uma família que convive junta há muito tempo e acumulou assim suas reservas de alegrias e dissabores. O patriarca, um médico aposentado que não se conforma com seus dias de pequena glória já passados, se ressente com o filho mais novo, Ryota, por este não ter seguido a profissão do pai; o filho mais novo busca a aceitação do filho de sua esposa de um casamento anterior; a mãe guarda rancor do rapaz a quem seu filho mais velho salvou, causando-lhe a morte, assim como ela não se agrada da nora por ter tido um casamento anterior. Os restos de uma tradição já  em vias de se extinguir entram em quietos conflitos com uma geração menos rígida.

Tudo isso Kore-eda o faz sem julgar seus personagens, apenas mostrando-nos como o amálgama de aspectos positivos e negativos faz cada um, com tudo o que os torna humanos. Assim, se ora condenamos as opiniões preconceituosos do patriarca, em uma cena final nos compadecemos dele por vermos sua dor em não encontrar mais espaço para ser útil em sua prática profissional, por não se ver mais creditado. Outros momentos sugestivos nos enchem de um afeto agridoce, como quando o filho de Ryota, que em geral se recusa a chamá-lo de pai, quando perguntado por um primo como o menino chama “o tio Ryota”, ele, no único momento do filme, diz, “papai”.

O filme conclui-se com uma coda que sugere que as coisas, se mudam, mudam aos poucos, e outras vão permanecer para sempre em sua forma não resolvida. Ao afastar a câmera de parte da família em um instante de união para um cenário de muitas casas iguais em um calmo cotidiano urbano, ficamos com uma terna lembrete de que estes dramas nós os vivemos todos.

 

Ressurreição, de Liev Tolstói

Tolstói é mais conhecido pelos grandes romances Guerra e Paz e Anna Kariênina, sendo fácil às vezes esquecer suas outras contribuições, a mais brilhante delas A morte de Ivan Ilítch. Ressurreição, assim como em relatos mais curtos como A sonata a Kreutzer e obras abertamente cristãs, vê o escritor russo buscando transmitir seus credos éticos e religiosos em uma forte história moral que transcende qualquer particularidade para atingir condições humanas que permanecem até hoje.

A história é sobre o príncipe (um título de nobreza na Rússia) Dmitri Ivanovich Nekhlyudov que, participando de um juri, vê Maslóva no banco dos réus, uma antiga empregada de uma de suas propriedades  a quem ele seduziu e que consequentemente se viu forçada a descer cada vez mais a patamares baixos de comportamento moral. Sentido-se culpado por ter desencadeado tal cadeia, começa no príncipe uma mudança completa em sua vida.

Tolstói, como um exemplar observador do comportamento humano que é, entende perfeitamente como mudanças assim não ocorrem de uma hora para outra, e assim segue com cautela, mas concisão (não é aqui que encontraremos uma trama cheia de sub-tramas periféricas, mas um relato direto), o mudar do pensamento do protagonista a uma destituição de sua conduta anterior rumo a um ideal mais puro, se não radical, de vida, em que abdica da exploração aos seus servos, procura estar mais sensível às necessidades dos outros, e começa a enxergar com clareza os absurdos burocráticos e injustos dos sistemas judicial e carcerário russo.

É neste último ramo que o romance se debruça, seguindo Nekhlyudov por tribunais e prisões, vendo a hipocrisia e o abuso de privilégios que os que estão em poder exercem, deixando de dar a atenção devida os juízes e demais funcionários públicos aos casos que têm diante de si por estarem demais acomodados com a situação vantajosa em que estão e esquecendo assim que aqueles esperando julgamento podem ter seus destinos injustamente selados por essa falta; a narrativa onisciente de Tolstoi oferece vários momentos tragicômicos em que nos é permitido saber o que pensam, por exemplo, um juiz: preocupado em chegar em casa e não haver almoço que comer por ter brigado com a mulher, desviando a sua atenção do julgamento a que preside. Também, e tão corajosamente e mais brutal é a mostra de como vivem os prisioneiros, maltratados, entre a própria sujeira, e tal demonstração choca se pensarmos na época em que foi escrito o romance.

Também presente está o subtexto e comentário religioso, que Tolstói deixa mais implícito visando um alcance e uma compreensão mais amplas do público, mas que não deixa de se manifestar em instantes em que condena a mesma religiosidade falsa de alguns, ou em partes chaves quando é necessário marcar o crescimento das personagens.

O texto publicado pela Cosac Naify e traduzido do original por Rubens Figueiredo (esgotado até que outra editora o reedite), como já dito, é bem sucinto, não deixando de ser uma leitura lenta, contudo; mas uma que se aplica às necessidades de se mostrar a evolução gradual da mente humana em busca de novos padrões de conduta.

Pecando levemente em algumas poucas passagens em que o escritor não consegue refrear sua vontade de propagar as verdades em que crê, transbordando ela em diálogos parcos em que o escritor parece mais estar conversando consigo mesmo,

Ressurreição, no entanto, prevalece como um conto moral dos mais bem realizados sobre a crueldade e hipocrisia dos privilegiados, da possibilidade de mudança de vida espiritual e prática e do poder do perdão, algo que, por si só, seria recomendado como leitura obrigatória aos dias de hoje.

Os melhores filmes de 2016.

Chegou o momento de relembrar aqueles que foram os filmes a mexer mais comigo, porque se teve uma coisa boa em 2016, foi o Cinema!

Foram tantas boas surpresas, e confirmações dentre os filmes que mais esperava, que vou dividir a lista em duas (e assim consigo pôr meus dois filmes favoritos em primeiro lugar :3 ):

Top 10 filmes de 2016, ainda não lançados comercialmente no Brasil, mas que de um jeito ou de outro pude assistir:

1. Toni Erdmann, de Maren Ade

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Um pai tenta se reaproximar de sua filha, uma workaholic que trabalha como consultora de uma empresa de petróleo. Se a premissa parece um desses filmes da sessão da tarde que todos já cansamos de rever, não se engane. A diretora é a alemã Maren Ade e seu estilo único, lançando sombras de surrealismo a eventos de outro modo bem reais, nos faz enxergar os absurdos que ficam dormentes nas relações humanas. Passamos a conhecer esse pai Winfried, que aproveita cada situação para fazer palhaçadas, em sua constanste tentativa de se aproximar de sua filha, a séria Ines, que tenta com grandes dificuldades ter uma posição de respeito em seu trabalho, e as investidas cômicas de seu pai intrometendo-se em sua vida profissional não poderiam vir em pior hora. Com quase três horas de duração, o filme nunca parece se demorar demais, mas ao contrário estende-se naturalmente, dando-nos oportunidade de conhecer a fundo esses e outros personagens. E sim, no fundo esse filme é uma comédia, a mais engraçada do ano; a diretora aproveita seu estilo meio surreal para construir situações inesperadas umas atrás das outras, nunca perdendo o timing cômico, de piadas tanto corporais, quanto situacionais e verbais. É impressionante como um filme tão longo nunca perca seu rumo e nunca deixe de fazer rir (o cinema em que vi estava lotado e nunca parávamos de rir). E por baixo de todo absurdo os personagens vão se reavaliando, crescendo, percebendo-se de outras maneiras e o apego emocional por essas pessoas também cresce em nós, que as acompanhamos por tanto tempo. O final é agridoce da melhor maneira possível, seguido de um triunfo cinematográfico como nenhum outro visto esse ano.

2. O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues

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Está para um filme esse ano superar a experiência imersiva que é esse O ornitólogo, um filme que se utiliza, tanto subversivamente como uma confirmação, da trajetória religiosa de Santo Antonio para ressignificá-la no mundo contemporâneo, na busca de identidade e aceitação próprias. Um filme cheio de um humor inesperado e perverso, e também que fala pelos sentidos, por alusões e metáforas. É um filme para se entrar simplesmente esperando se perder em uma jornada estranha.

3. Mistério na Costa Chanel (Ma Loute), de Bruno Dumont

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Um olhar cômico na nobreza insensível e insensata assim como na justiça pateta, tudo por um viés bem cartunesco (em certo momento a personagem interpretada por Juliette Binoche, descendo uma ladeira, pula e, suspensa no ar por uns segundos, move com rapidez os pés sem conseguir se locomover, lembrando os desenhos animados que empregavam situações assim) recheado de comédia corporal e exageros que bem se adequam a essa narrativa tresloucada e biruta.

4. Midnight Special / Loving, de Jeff Nichols

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Foi um bom ano para Jeff Nichols, lançando dois filmes, um no início do ano em Berlim, outro em Cannes, e se os dois são bem diferentes entre si, não são menos memoráveis. Midnight Special segue a tradição de filmes de ficção científica dos anos 80 na veia de Spielberg e John Carpenter, e trata de maneira linda e poética sobre deixar aqueles que amamos ir, assim como a inspiração do legado artístico na vida dos outros. Já Loving tem a difícil tarefa de simplesmente nos mostrar a história de duas pessoas que se amam, mas são impedidas de viverem juntos pelas leis antigas do estado onde viviam por serem  de cores diferentes. É um filme que fala alto por silêncios, não recorrendo a truques baratos para chamar a atenção a si, e por essa restrição auto-imposta, Nichols demonstra pelas suas habilidades de direção que uma história pode ser sutil e ainda assim impactar.

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5. Manchester à Beira-Mar (Manchester by the Sea), de Kenneth Lonergan

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Um filme tristíssimo sobre a impossibilidade de se curar de certos traumas que também calha de ser engraçadíssimo. Casey Affleck (em sua melhor atuação), junto com Lucas Hedges e Michelle Williams nos mostram personagens tão humanos que ora nos afeiçoamos a eles, ora como eles nos espantamos, mas nunca deixamos de compreendê-los, sentir por eles. Um dos filmes mais ricos em empatia desse ano.

6. A Criada (Ah-ga-ssi), de Park Chan-wook

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Apenas o diretor de Oldboy conseguiria ser tão subversivo ao tratar dessa história dos desejos humanos. O enredo é tão cheio de curvas e revelações que explaná-las tirariam a graça de quem descobre tudo sozinho pela primeira vez. E é rica o bastante para em outras visitas ainda permitir novos olhares, enxergar novos detalhes. É um filme sobre desejo e dominação e como estes papéis se invertem, se ressignificam, e é maravilhoso ver o cuidado até em frases proferidas pelos personagens que são depois apropriadas por outros com outra intenção; é uma experiência única, cheia de cenas meticulosamente bem compostas e uma trilha envolvente. O melhor filme do diretor depois de Oldboy.

7. Uma Paixão Tranquila (A Quiet Passion), de Terence Davies

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Uma linda biografia da poeta Emily Dickson que entende sua luta com o mundo e humaniza essa personagem intrigante que se sentia tão acossada pelo convívio com os outros assim como por sua doença física, que é impossível não simpatizarmos com ela. Completa o encanto a poesia da autora que é ouvida nos momentos certos a ditar o estado em que a história e os personagens se encontram.

8. A Bigger Splash, de Luca Guadagnino

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Um filme cheio de energia, música, gritos, gestos, que vai aos poucos nos mostrando o mundo desses personagens abastados e amorais –  e também como aos poderosos é fácil delegar a responsabilidade aos impotentes. Essa jornada envolvente fica completa com a presença de um Ralph Fiennes hilário e uma (sempre excelente) Tilda Swinton encarnando o papel de uma rock star à la Bowie que, sem surpresa, encaixa-se tão bem com a atriz.

9. High-Rise, de Ben Wheatley

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Uma maravilha de edição fluida é esse filme, fazendo com que a história distópica de personagens que moram em um arranha-céu (onde os ricos ocupam andares superiores e os pobres, inferiores) seja vista com distanciamento frenético e sempre envolvente. É mais uma experiência sensorial do que uma história convencional, mas em que os elementos técnicos do filme se adequam à mensagem que quer passar.

10. A Mulher que se Foi (Ang Babaeng Humayo), de Lav Diaz

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Os filmes do filipino Lav Diaz apostam na metragem super estendida para uma imersão em um espaço e um envolvimento realista com os personagens para sentirmos uma espécie de realidade sensorial que apenas o cinema é capaz. E assim, com quase quatro horas de duração acompanhamos uma mulher que busca vingança por um crime de que foi injustamente condenada. Essa premissa convencional, estendida da maneira que é traz um olhar bem humano e duro a essa e outros personagens. Uma fotografia em preto e branco de alto contraste cuidadosamente bem composta estão ali também para garantir um completo senso de maravilhamento nessa experiência cinematográfica.

 

Menções Honrosas: Always Shine; Certas Mulheres (Certain Women); Vida, Animada (Life, Animated); Na Vertical (Rester Vertical); Sala Verde (Green Room); Voyage of Time: Life’s Journey; Demon; Under the Shadow; The Eyes of my Mother; The Mermaid; Sunset Song; Cosmos.

 

Top 15 filmes de 2016 lançados comercialmente no Brasil, seja em circuito seja na Netflix:

1. Cavaleiro de Copas (Knight of Cups), de Terrence Malick

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A alma afligida por saber que há uma plenitude a ser alcançada mas, perdida, não sabe encontrar o caminho que a levará lá. Terrence Malick cada vez mais, desde A Árvore da Vida, vem entregando-nos um material de difícil entrada, que ignora quaisquer convenções do que e como um filme deve se apresentar, aqui vai mais abstrato do que nunca, enxergando a história e os personagens ao seu redor com o olhar caraterístico do protagonista, vivido por Christian Bale, que não consegue passar além da noção de artificialidade das relações humanos, sem conseguir se conectar  espiritualmente tampouco. Aliado ao colaborador de sempre, o cinematógrafo Emmanuel Lubezki (que embora excelente em todos os seus trabalhos, ganha mais destaque nos mais comercias, deixando de ser apreciado como deveria em seus esforços mais experimentais), Malick tece uma colagem frenética de imagens possibilitando novos significados em diferentes visualizações, cortes bruscos que acentuam a desconexão de indivíduo/mundo – e que não por isso o filme deixa de ser fluido e imersivo, contemplativo, auto-reflexivo-, uma trilha eclética e vasta de peças clássicas a rock, e aqui mais presente do que nunca está uma veia poético-literária que se aprofundam na mente do espectador. É uma jornada tortuosa, difícil, melancólica, mas que apresenta um vislumbre de esperança, sugerindo que embora a plenitude nunca possa ser atingida nessa terra, precisamos sempre recomeçar o caminho em direção a ela para usufruirmos o melhor que aqui nos é possível viver. É dessa eterna jornada da alma em busca à felicidade que o filme nos inspira a também realizar.

2. O Demônio de Neon (The Neon Demon), de Nicolas Winding Refn

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Um dos filmes mais polarizantes do ano, ame ou odeie, se há uma coisa que é inegável é sua exuberância estética, desde os planos geometricamente bem compostos de cores super saturadas, à trilha eletrônica sempre pulsante, à maquiagem e ao camarim, tudo aqui nos coloca dentro dessa hipnotizante alegoria sobre a beleza no meio fashion. O diretor sabe que está transitando no meio do ridículo, e assim ele traça uma fina linha entre os diálogos que escapam direto do consciente coletivo, daquilo que todos pensam mas em ocasiões normais não falariam, e a aparente refinação do ambiente. Vários aspectos da beleza num mundo capitalista são tratados aqui, desde a protagonista sentindo-se quase que culpada por possuir naturalmente aquilo que tantas outras almejam, passando pela perda da ingenuidade, a todos os artifícios que se emprega para ser belo. Tudo é apresentado de forma bem abstrata e é fácil ver as belas imagens do filme como vazias, mas creio que qualquer um que internamente é levado, de uma forma ou outra, a preocupar-se com a própria perfeição irá enxergar ali algo com o que se identificar e entender.

3. Cemitério do Esplendor (Rak ti Khon Kaen), de Apichatpong Weerasethakul

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Um filme lento e imersivo e visualmente lindo sobre as camadas do passado histórico que se vão se acumulando no presente. Será uma das melhores experiências fílmicas àqueles que, com paciência, apenas querem se deixar envolver totalmente por uma atmosfera nova.

4. Elle, de Paul Verhoeven

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Completamente subversivo quanto a convenção de gêneros, um thiller de vingança, que é um drama familiar, pontuado da comédia mais ácida que não poupa padrões de moral e ética nenhuns… ao centro disso tudo está Isabelle Huppert, uma das mais (se não a mais) competentes atrizes atuantes que consegue sempre passar por qualquer problema que seja e ainda assim permanecer com a feição mais impassível, deixando ao espectador o encargo de ousar decifrá-la. Com essa, Huppert e o roteiro baseado em um romance francês mais a direção de Verhoeven acostumado a provocar entregam-nos um estudo de personagem complexo sobre dominação e as percepções distorcidas que temos dos gêneros, e que promete mudar a cada vez que decidirmos voltar ele…

5. As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes

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O diretor do excelente Tabu retorna com essa apropriação do estilo solto de contar histórias das Mil e Uma Noites, e assim, com Xerazade como nossa narradora, acompanhamos, em três filmes (ou volumes), após um prólogo do primeiro ilustrando a inutilidade e impossibilidade de se contar uma história apenas por escapismo sem um comentário político (e vice-versa), várias histórias carregadas daquela qualidade ancestral que fazem as boas histórias fabulosas e ainda assim sempre conversando com nosso presente, com nossas relações éticas, morais, sociais e políticas, nem sempre de maneira direta e clara (ainda mais se levarmos em conta que os eventos foram inspirados por uma crise que houve em Portugal entre 2013 e 2014 gerando pobreza generalizada), mas isso pouco importa porque a capacidade do diretor de fazer-nos seduzir e encantar pelo feitiço de suas habilidades narrativas mantém-nos sempre embalados, podendo depois pensar sobre o que vimos. Uma característica extraordinária desses filmes é como eles permanecem com suas imagens suspensas por um tempo sem fim sem que percamos o interesse, mas ao contrário nos hipnotize, assim como ao ler ou ouvir histórias fabulosas criamos imagens mentais suspensas, imagens que ficam conosco, não nos abandonam. É uma magia narrativa como nenhuma outra essa que o português Miguel Gomes é capaz de conjurar.

6. A Bruxa, de Robert Eggers

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O filme de terror mais aclamado desse ano, e que será um a ser lembrado nos anos vindouros, constrói tensão pela relação de paranoia e fanatismo religioso dos personagens, e talvez por isso não entre na cabeça de todos nem os incomode e assuste tanto quanto filmes mais comerciais do gênero, mas independentemente disso é inegável, quando se presta atenção, o trabalho do diretor em nos colocar em um ambiente crescentemente hostil e temeroso, qualidades em parte devido à fotografia realista e imersiva e sempre bem enquadrada, em parte pela trilha enervante de vozes dissonantes, em parte pelas excelentes atuações; e o resultado é um filme que entra no seu subconsciente caso você permita, e será difícil tirá-lo de lá, uma vez assimilado.

7. Boi Neon, de Gabriel Mascaro

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A condição humana como animal que mal sabe estar encarcerado, podendo apenas sonhar com uma vida livre, em uma abordagem naturalista que realiza proezas enormes em situar-nos no mesmo ambiente de seus personagens quase ignorantes de si, ao ponto de que em uma cena de sexo prolongada tudo o que resta e se estende é a atmosfera que cerca os amantes, sendo eles mesmo pouco ou menos que os objetos inanimados que os cercam, tal o poder de conjurar uma ambientação do diretor. Se isso não é o mais perto de encanto que podemos experimentar vendo um filme, não sei mais o que é.

8. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho

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Um lindo filme regado de vida e suas vivências, que trata da importância da presença da memória, a preservação da empatia, e a resistência como arma de vida, assim como tantas outras coisas. Suficiente talvez seja dizer a força com que carrega o filme a atriz Sonia Braga, como a personagem mais amável dos últimos tempos.

9. American Honey, de Andrea Arnold

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Um grupo de adolescentes percorre a América em  busca de uma condição de vida livre, e para isso vendem revistas – ao que na verdade eles vendem a si mesmos, às mentiras que contam para conseguir dinheiro. É uma análise do que é o sonho americano para o mundo contemporâneo, cheia de metáforas no caminho, e por todo o tempo hipnotizante pela belíssima fotografia e um ritmo maravilhoso que embala com muita música e em aspecto documental a jornada desses jovens desamparados, sempre pondo-nos no aqui e agora, como se vivenciássemos junto com eles seus caminhos.

10. Os Oito Odiados (The Hateful Eight), de Quentin Tarantino

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Tarantino voltou esse ano com mais um filme que traz sua marca de crueldades e subversão, trazendo-nos dessa vez um western que se passa a maioria do tempo em um armazém e lá estão vários personagens que as poucos vão nutrindo suspeitas uns dos outros rumo a um sangrento final. O que tem de especial aqui – fora a linda fotografia que consegue nos colocar dentro desse espaço confinado e ainda assim faz-nos ter uma boa noção de todo o espaço ali dentro (e quando nos é mostrado o exterior, ah! que lindas paisagens cobertas de neve!), a trilha sonora tensa e potente de Ennio Morricone – são as interações entre esses personagens, brutais e de tensão crescente, que prende a nossa atenção; e é como se víssemos ali dentro tudo de podre e corroído que se encerra na América. Outro destaque é o sempre bem-vindo caráter metalinguístico da obra que mais de ser um mero truque, serve às mensagens que o filme quer passar. Lindo e provocador, é o cinema de Tarantino em sua melhor forma.

11. O Que Está Por Vir (L’Avenir), de Mia Hansen-Løve

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Através da direção sutil que faz todo o trabalho de deixar os personagens e a história fluir sem afetações estilísticas parecer ser coisa fácil, a diretora do também excelente “Adeus, Primeiro Amor” nos presenteia com uma outra performance de Isabelle Huppert que mostra o quão versátil a atriz é. Totalmente em tom com o material sutil do filme, Huppert nos apresenta sua personagem em um recorte em que várias mudanças ocorrem com as quais ela precisa lidar, assim como a constante presença do futuro cheio de ansiedades, incertezas… mas sempre com a cabeça erguida e esperança de que o que está por vir será um novo caminho que valha a pena desbravar.

12. A Chegada (Arrival), de Denis Villeneuve

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O amor e a vivência que se abraça mesmo sabendo das dificuldades e perdas no percurso. Contado com o olhar particular da ficção científica e tendo uma excelente Amy Adams como protagonista, esse filme entende esse lado doído dentro do amor, e assim entrega uma experiência emocionante, que convida a ser olhada como novos olhos a cada visita.

13. Amor & Amizade (Love & Friendship), Whit Stillman

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Um dos filmes mais agradáveis desse ano também é um de senso de humor cortante, cheio de ironia e tom satírico quanto ao seu material fonte, uma novela de Jane Austen, autora que sempre lançava um olhar cômico às convenções sociais; e assim é natural que o diretor seja satírico com a própria convenção de filmes de época, usando elementos técnicos para fazer uma leve zombaria, como nos textos que apresentam os personagens ou as palavras das cartas que aparecem na tela. Liderado por uma excelente Kate Beckinsale, esse é um dos filmes mais engraçados e adoráveis que você verá desse ano.

14. Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man), de The Daniels

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Esse filme tem um quê de esquisito e que é ainda mais especial por isso quando se percebe o tanto de verdade, de uma verdade dolorida, está nessa história que envolve um jovem tentando se reconectar com a sociedade e para isso se utiliza da companhia de um cadáver que aos poucos ganha vida e ensina ao protagonista a se aceitar como ele é. Ah, e o filme utiliza coisas nada ortodoxas como piadas de peido ou uma ereção como bússola como metáforas para essa aceitação própria e redescobrimento das relações humanas, e funciona! É um filme que falará mais forte com aqueles que tem um pouco de solidão guardada em si.

15. Sieranevada, de Cristi Puiu

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O diretor romeno Cristi Puiu nos coloca dentro de um apartamento na maior parte do tempo onde acontece uma reunião de família para um ritual de comemoração da partida do patriarca; ali ficamos como que observadores privilegiados por poder ouvir conversar de detrás de portas, de vários ambientes ao mesmo tempo. A composição é super coreografada e ao mesmo tempo natural, então a câmera que fica sempre presa em um local, mas se movendo em seu eixo, às vezes persegue um personagem mas volta pro outro lado da tela quando percebe que um outro personagem está falando algo. É um filme cheio desses conflitos familiares que vemos em filmes de reunião familiar, com o acréscimo de que muitos ali são muito politizados e as conversas deles acabam trazendo a política pra dentro da família e a família como um símbolo maior de embates políticos, cada vez mais tortuosos e trazendo um crescente clima de dissidência no ambiente, mas que no final, por ser aqueles a família que têm, não podem deixar de sentirem-se gratos. O filme conta  com um humor brilhante também, fez a sala em que vi rir alto em vários momentos, principalmente em um envolvendo um padre que demora a chegar. A longa metragem pode assustar, mas o clima quase sempre frenético de conversas fazem desse filme um dos mais recompensadores do ano.

Menções honrosas:

Mais Forte Que Bombas (Louder Than Bombs); Mogli: O Menino Lobo (The Jungle Book); Carol; O Quarto de Jack (Room); Meu Amigo, o Dragão(Pete’s Dragon); O Convite (The Invitation); O Regresso (The Revenant); Deadpool; Ave, César! (Hail, Caesar!); Rua Cloverfield, 10 (10 Cloverfield Lane); A 13ª Emenda (The 13th); O Homem nas Trevas (Don’t Breathe); Julieta; Into the Inferno; A Ovelha Negra (Hrútar); Fique Comigo (Asphalte); Zootopia, Boa Noite Mamãe (Ich seh, Ich seh), Tudo Vai Ficar Bem (Every Thing Will Be Fine).

 

Os Esquecidos:

muitos filmes acabei deixando pra ver amanhã, que acabou nunca vindo e o resultado é que ainda não assisti: Jovens, Loucos e Mais Rebeldes (Everybody Wants Some!!), O filho de Saul, Spotlight, Aferim!, Rogue One, Animais Noturnos (esse estreou no finzinho de dezembro, e não deu pra ver), Animais Fantásticos e onde Habitam, Meu Rei, Cinco Graças, Nossa Irmã Mais Nova etc.

outros estão ausentes dessa lista por já constarem na minha do ano passado, caso de A Assassina, Anomalisa, Brooklyn, The Lobster e O Fim da Turnê.

 

Foi isso o que deu para fazer em matéria de cinema esse ano que passou. Espero que 2017 nos traga ainda mais bom filmes, e é com esse desejo que eu encerro!

 

Blow-Up – Depois Daquele Beijo (Blow-Up), 1966

Um bando de mímicos socados em um carro correm pela cidade ordeira, fazendo um estardalhaço. O dia a dia transcorre sem aparente necessidade de perturbação. O bando para em vários locais para encenar uma brincadeira que põe à vista aquilo a que resume a convenção dos afazeres, dos prazeres, da busca de sentido de todos.

Depois Daquele Beijo (Blow-Up) é o tipo de filme que qualquer pessoa em sã consciência acharia entediante. Nada acontece. Por vezes a mente intranquila se pergunta quando vai haver o momento a revelar o motivo de se estar vendo tudo aquilo. Até que nosso ritmo se alinha ao do filme e nos rendemos ao domínio de Antonioni.

O diretor italiano mostra em sua carreira a dificuldade, se não inutilidade, de se estabelecer uma comunicação sólida. Já que somos seres de pensamentos e sentimentos tão alheios, como conciliarmo-nos entre nós mesmos. Aqui, como também em outros de seus filmes (especialmente em A Aventura), Antonioni direciona essa ideia de dissolução à própria estrutura de enredo das histórias.

O filme não se desenvolve a partir de eventos, de uma sequência de acontecimentos pelos quais podemos obter esclarecimento. Mas, de forma quase arbitrária, através do que for que esteja acontecendo, o entendimento vai se estabelecendo, não como uma construção sólida, mas um adensamento de névoa. Há o desafio de se tentar materializar abstrações.

E com isso brinca o diretor. Este está numa posição de descrença na verdade no fingimento, na verossimilhança, na apresentação de um mundo tão aparentemente real mas do qual não se pode obter nenhum sentido. De que adianta construir ponto por ponto uma corrente de eventos tão bem urdidos se depois o que permanecerá é isso apenas, uma armação?

As próprias redes de relações humanas revelam a dissimulação, sempre lenta e fastidiosa, que ocorre quando se procura obter do outro algo, alcançando ora uma satisfação vazia ora um resultado irrisório. Há uma tentativa pelo protagonista de comprar uma loja de antiguidades que primeiro é frustrada por um funcionário rabugento, e depois, na presença da dona, vê-se a necessidade de adulação, comprando uma hélice de madeira enorme que provavelmente não servirá para nada. Em outros momentos, duas meninas tentam fazer de tudo para serem fotografadas numa agência de modelos, mas, claramente inexperientes, servem apenas para satisfazer os desejos do dono do estabelecimento, prometendo fotografá-las no próximo dia.
Em certo ponto, o personagem principal, um fotógrafo, capta uma foto de um assassinato. Só que ele não sabe se tratar de um, tão escondido está o assassino, tão cuidadoso o preparo da cena foi feito: uma mulher anda com seu amante num parque, sobre a grama, o atirador nos arbustos. Quando percebe ser fotografada, ela vai inquirir sobre as fotos. Estas, quando muito ampliadas, mostram o homem escondido e o corpo do amante, morto quando o fotógrafo se distraía com a mulher.

Em vários momentos tem-se a impressão de se observar uma série de exercícios em distração. O protagonista sai com um objetivo em mente, apenas para acabar fazendo outra coisa completamente diferente. Nesse aspecto, esse é um filme de detetive às avessas, em que os personagens tentam repetidas vezes obter alguma resposta, mas se perdem no caminho, sem nem lembrar qual era o itinerário inicial.

A pergunta que parece ser feita é por que seguir pistas se o que se encontrará será uma enganação em forma de verdade? Parece haver uma afronta à tentativa de reproduzir com grande empenho a busca em direção a uma descoberta que será esquecida minutos depois.

Mas se há uma revelação aqui, é a lição que bem conhecem os mímicos, e estes a tentam ensinar: a de que mais importante do que está em evidência, é preciso aprender a trabalhar com o que não está lá.

★★★★★

Na Vertical (Rester Vertical), 2016

Na vertical é um filme que desafia o espectador a decifrá-lo. Começa bem simples: um roteirista de cinema luta com a escrita de um filme, pela qual é constantemente cobrado, sem nunca sair da primeira linha. Enquanto isso, visita uma aldeia, conhecendo lá uma moça com quem tem um filho. Ela cuida junto ao pai de um rebanho de ovelhas, que necessitam ser vigiadas dia e noite por causa de lobos que sabem-se estar sempre à espreita. Também nesse vilarejo mora um jovem que o escritor acredita ter um bom rosto para cinema, e assim o importuna vezes sem conta com propostas para aquele participar de seu filme.

Mas logo vemos que na verdade o filme assume uma forma de fábula absurdista, evolvendo os elementos da narrativa em um véu de significados crescentemente oblíquos e distorcidos, com os quais quem assiste precisa ora se esforçar por achar algum sentido ou então recuar pasmado.

Primeiramente notamos como a sucessão de eventos não ocorre dentro de um período esperado de tempo. Assim, enquanto o protagonista ainda está começando a escrever seu roteiro, ele descobre que a moça com quem tem se relacionado está grávida, e logo depois o bebê já nasce. E o prazo de entrega do roteiro ainda é mesmo. A mãe inesperadamente rejeita o filho, deixando-o aos cuidados do pai.  Um bebê parece menos ser o que é, um bebê, do que alguma representação íntima de algo que se cria e guarda para si e se cuida. Um tesouro, uma ideia viva em evolução.

Da mesma maneira, tudo o que acontece a partir de então parece revelar não o seu sentido objetivo, mas um codificado em símbolos, os quais podem não dizer muito no momento em que são presenciados, mas de certa maneira conferem uma aura de estranheza ao filme, permanecendo na nossa mente depois que saímos da sessão, para que façamos com eles praticamente o que quer que queiramos. Uma metáfora que se faz obscura demais, convida-nos mesmo que involuntariamente a darmos o nosso sentido mais íntimo ao que vemos, respondendo por um sistema de sugestão quase tão livre quanto um teste de rorschach.

Este é um filme do diretor Alain Guiraudie, cujo trabalho anterior foi o thriller erótico hitchcockiano seguramente dirigido, Estranho no Lago, que nos fazia refletir sobre a natureza dos laços afetivos, que, não obstante destrutivos, os desejamos constantemente. Era uma abordagem completamente diferente, mais realista e direta.

Em Na Vertical, o diretor mantém seu domínio do ritmo que nos envolve lentamente em uma atmosfera de estranhezas, marcando bem a transição gradual da realidade assim como a vemos (ou pensamos ver) àquela proposta. É uma visão da realidade tão estrangeira a princípio, que enquanto se testemunha não sabemos muito o que pensar, que dizer o mais básico, se gostamos ou não. Há aqui também um senso de humor incrivelmente desafiador, convidando-nos a não fazer outra coisa a não ser rir nervosamente diante de situações extremamente incômodas. A fotografia, límpida e vívida, sugere um realismo que vai de embate com a apresentação surreal do campo das ideias, e que gera, paradoxalmente, uma imersão maior em um ambiente que, de outra forma, poderia ser insuportavelmente impenetrável.

Obscuridade e hermetismo excessivos podem causar efeitos extremos: ora nos afasta com indiferença, ora obriga-nos a, intrigados, cavar e cavar sentidos para aquilo que foi visto (ou lido ou ouvido etc). Como recebemos tal obra parece ser regulado por alguma afinidade interior que julgamos ter com ela, afinidade essa que criamos baseados no nosso entendimento parcial do que presenciamos. O que este que vos fala parece, então, ter visto ali, foi uma representação da nossa sociedade que impõe e exige o cumprimento de normas, vindo de todos o lados (e o que se rejeita facilmente é aceito pela pressão do meio), sempre plurais e contrastantes, sendo a única maneira de se sobreviver permanecendo de pé, parado, como que para não se deixar consumir por lobos.


★★★★☆

  • Visto no Festival do Rio de 2016

A Bruxa (The Witch), 2015

A fonte  principal de todos os medos provavelmente reside em desconhecimento, ignorância. Avistar algo inteiramente fora de seu círculo de entendimento aproximar-se leva ao temor de que tal coisa irá afetá-lo também. E do medo parte-se facilmente para a falta de razão e a violência.

A Bruxa, primeiro filme do diretor Robert Eggers, utiliza essas características frágeis do ser humano em seu centro para construir um clima tenso de inquietação crescente, paranoia e histeria, gerando o terror a partir da exposição do psicológico das personagens conforme a desgraça progride e, assim, o senso de desespero, quando se entende, passo a passo, o caminho que todos ali percorreram.

William e sua família, sua esposa Katherine, sua filha Thomasin e seu filho Caleb, este entrando na puberdade, aquela encontrando seu caminho rumo à maturidade, e as duas crianças pequenas Jonas e Mercy, logo no início da história são vistos expatriados da comunidade cristã que frequentavam, por william estar perturbando os demais com suas interpretações próprias da Palavra de Deus – fato que será comprovado e utilizado como parte importante da narrativa.

Eles refugiam-se numa fazenda com campo para plantio de milho, além de criação de cabras, e não tarda para que percebam que o banimento foi apenas o início de seus problemas. Segue-se o desaparecimento do bebê recém nascido do casal, as provas de que a terra é inapropriada para a plantação e muitos outros acontecimentos cada vez mais estranhos que fazem os personagens ter a certeza de estarem amaldiçoados.

E é nessas reações de certeza demais que vamos entendendo as personagens melhor. O pecado, não importa se não há, está enraizado na cabeça de todos, mesmo os já pequenos – em uma cena o pai lembra ao filho adolescente do pecado orginal e como ele se estende até nós. Aparentemente a graça divina é esquecida. E mais estupidificante são algumas crenças tortas, com a de que o bebê sumido, e corretamente presumido morto, está no inferno por não ter sido batizado. É em um meio de tão total ignorância da fonte de sua própria míope, fanática fé que todos se encontram.

O que nos leva à bruxa do título. Eggers afirmou como suas pesquisas históricas o levaram a perceber que tais seres vivendo no meio dos habitantes dos ingleses recém migrados aos Estados Unidos no início do século XVII era uma realidade. Histórias de bruxas eram fomentadas de boca em boca, ganhando credibilidade, e assim as elas adquiriam vida. E então na paranoia de que elas estavam ao redor, conquanto não fossem vistas, qualquer um poderia ser uma – inclisive um membro de sua família morando contigo, inclusive crianças. Vale lembrar que o subtítulo de A Bruxa é A New-England Folktale (um conto popular, passado adiante e revestido de superstição), que reforça a noção de que o fabuloso convive com o cotidiano sem distinção, os dois inseparáveis, um tanto real quanto o outro por se acreditar assim.

O filme se passa um pouco antes da famosa caça (e execução) às bruxas em Salem e serve como um bom prelúdio ao evento, assim como se mantém atual pelo fato de tratar de seres humanos e as questões que os assolam, que são as mesmas hoje, independentemente da ação do tempo.

O diretor consegue trazer ao nosso tempo uma história remota a partir da já mencionada complexidade das personagens, sempre intrigantes e multidimensionais, (e parte desse êxito se deve às excelentes atuações, desde os mais pequeninos, aos atores adolescentes e os adultos. São atores desconheidos – a única que levemente se destaca é a atriz que interpreta a mãe, integrante do elenco de Game of Thrones – e ainda assim só deverão lembrar dela os fãs mais ardorosos da série) e também pelo maravilhosa capacidade de imersão do filme. Filmado em grande parte usando luz natural, quase podemos tocar, sentir e cheirar a floresta, os cenários construídos à forma da época, todo os arredores em que vemos essas pessoas. A trilha sonora, sedutora e desconcentante ao mesmo tempo, desempenha um papél importante em ajustar o tom de perturbação e pavor iminentes.

No centro de tudo, no entanto, está Thomasin, a menina encarando o fardo da maturidade que se aproxima. Ela é gradativamente temida por todos, o poder da estranha e nova fase de sua vida causa desconforto demais aos outros. A repulsa da mãe à garota parece dizer daquela como ela enxerga, num processo natural, no desabrochar da sexualidade, novamente um pecado. O pai, se de início demonstra ser com quem a menina mais pode contar, logo sua instabilidade e seu fanatismo surgem como ameaça. Mesmo sem sua vontade, Thomasin causa a desestabilização do meio em que vive.

E assim nos encaminhamos ao final fantástico, que nas linhas assumidamente alegóricas do filme encontra sua conclusão perfeita. Com esta, à luz de todos os acontecimentos, inúmeras interpretações surgem (e um debate em grupo será sempre bem vindo). Podemos ver na resolução um argumento para a necessidade do afastamento de um meio de intolerância e fanatismo; um rompimento com as amarras do passado rumo à independência; um caminho traçado em rumo ao amadurecimento; mais negativamente, uma ascensão final e total à desgraça. E muito mais sentidos dependendo do significado próprio que cada um carregar consigo e imprimir ao que viu. Uma coisa em comum em todas é que um divórcio tão profundo requer morte, real ou simbólica.


★★★★★

Oslo, 31 de Agosto (Oslo, 31. august), 2011

31 de agosto em Oslo, nessa data, nesse local, Anders passa seu último dia em vida. Acompanhamos o dia desse rapaz de 34 anos que acabou de se reabilitar de um vício em drogas e está novamente tentando se inserir na sociedade. Acompanhamos seu dia, em que se encontra com um velho amigo, vai a uma entrevista de emprego, tenta entrar em contato com duas mulheres queridas em sua vida – sua irmã e sua ex-namorada, ambas as quais não parecem ter tempo para ele. Tenta encontrar algum divertimento passageiro. E então ele dá cabo de sua vida.

O diretor norueguês Joachim Trier, porém, faz-nos enxergar com sutileza a maneira como o protagonista vê, desinteressado (desesperançado), o mundo e as pessoas à sua volta, e assim entrega-nos um estudo sincero e competente sobre a depressão.

Anders (interpretado pelo ator Anders Danielsen Lie) parece saber demasiadamente bem que não há mais nada com que ele possa se ocupar, se interessar, e logo no início isso fica claro na conversa com seu melhor amigo sobre o porquê deste participar de pesquisas acadêmicas e escrever artigos “que ninguém vai ler”, segundo Anders; pois ele também possui aptidão para a escrita, tendo trabalhado por algum tempo em  jornais, mas não vê o sentido que tal atividade lhe propiciaria. Aliás, nada parece fazer sentido e a ajuda de seu amigo em tentar encorajá-lo a recomeçar, fazendo algo que ele é capaz, resulta em nada.

Desse modo, com essa convicção, Anders caminha pela sua vida, encontrando diversões que vêm e passam sem alterá-lo. Alguma culpa familiar antiga o rodeia (e é ainda mais desolador vê-lo abandonado pela família, sem esta vir procurá-lo, oferecer-lhe ajuda). E sua culpa estende-se à visão que ele tem de si mesmo – em sua entrevista de emprego, o empregador parece impressionado com os trabalhos de Anders, mas questionado sobre a falta de uma ocupação nos últimos anos (coincidindo com o período em que ele esteve envolvido com drogas) ele abre o jogo quanto ao motivo, e, irritado e apesar do pedido do entrevistador para que deixe na empresa seu currículo, ele o toma e o joga fora na saída.

A visão que Trier mostra do protagonista estende-se à que este têm das pessoas que o rodeiam, tão atarefados, andando e conversando com algum propósito, e em silêncio, na cena mais comunicativa e tocante do filme, vemos Anders apenas olhando para essas pessoas todas e conseguimos perceber a frustração por não ser assim, por não ser capaz de enxergar um motivo de viver – ao mesmo tempo em que o olhar dessas pessoas filtrada pela vida de Anders mostra-nos como também essa vivacidade alheia não faz sentido algum.

Oslo começa (e termina) com imagens da cidade vazia. E no início ouvimos vozes de várias pessoas recontando lembranças da cidade enquanto aludem a um “ele” que remete ao protagonista. Durante o filme ouvimos também narrações de Anders (provavelmente quando da terapia). E tudo isso, bem sutilmente, cria um clima melancólico e delicado ao filme que só faz reforçar a exposição de seu personagem principal. Ao final, vimos um painel compreensivo de uma vida em quieto sofrimento. Uma pintura reflexiva que permanece na mente do espectador, direcionando o pensamento a um problema tão estigmatizado em nossa sociedade e que precisa de um maior entendimento (objetivo e compassivo) de todos nós.


Os Melhores Filmes de 2015

Chega final de ano, e, junto a vontade de listar os melhores acontecimentos do ano, de lhes fazer justiça pela memória. Nesse caso, relembro os melhores filmes de 2015 que vi (a lista a seguir conta tanto com filmes lançados aqui esse ano, como com aqueles lançados por enquanto lá fora apenas):

1 – Vício Inerente, de Paul Thomas Anderson

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Meu filme mais esperado – e o que mais ofereceu recompensas a espera. É desses filmes que respiram o seu próprio ar, desfilam pela tela sem se importar em se fazer entender pela lógica comum, mas antes abraça aqueles que esperam pura e simplesmente se deixar levar pelas sensações que o filme evoca. Maravilhoso! (falei um pouco mais dele aqui).

2 – A Assassina, de Hou Hsiao-Hsien

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Talvez o filme mais misterioso dentre os dessa lista. A Assassina tem a capacidade rara de levar o espectador a uma época e tempo diferentes, remotos, e fazê-lo experienciar a sensação de que realmente está diante de algo inacessível… e ainda assim deixa-nos intrigados pela sua beleza de tirar o fôlego. Não é um filme para quem busca uma história fácil de seguir, mas para aqueles que não temem ser confrontados pelo o que desconhecem.

3 – Mad Max: Estrada da Fúria, de George Miller

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Muito se falou desse filme esse ano que é difícil não soar repetitivo. Sim, é um dos melhores filmes de ação já feitos; Charlize Theron arrebenta como a Imperatriz Furiosa; ao confiar mais em efeitos práticos, ao vermos aqueles carros capotando e explodindo e sabendo que aquilo tudo foi mesmo feito, o filme ganha muito mais credibilidade; ver a doideira de todas aquelas pessoas e ainda conseguir entendê-las, ver que há uma conexão ente o mundo doido de Max e o nosso tanto nos traz um sorriso pelo reconhecimento quanto nos espanta, pelo mesmo motivo. Mas o que mais me atraiu ao filme foi essa qualidade de quase filme mudo, em que a ação, os acontecimentos seguem sem que se precise explicar o que acontece, deixando que o nosso entendimento surja pelo poder das imagens.

4 – Anomalisa, de Duke Johnson e Charlie Kaufman

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“O filme mais humano do ano sem nenhum humano em tela”, assim tem sido exaltado o filme lá fora. E realmente, a mente por trás de genialidades como Quero Ser John Malkovich, Adaptção, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças etc nos entrega aqui uma reflexão altamente melancólica sobre o que é viver em depressão, sem interesse para nada ou ninguém, encontrando momentaneamente o brilho que o poderia salvar da escuridão aterradora, apenas para vê-lo ir embora para o mesmo lugar misterioso de onde veio…

5 – Brooklyn, de John Crowley

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Uma atuação iluminada de Saoirse Ronan interpretando uma moça irlandesa que deixa atrás mãe e irmã em busca de uma oportunidade melhor de vida na América. Lá ela encontra o amor, mas quando o passado a chama de volta, ela precisa decidir por conta própria o destino de sua vida. Um filme que flui com elegância e graça, e nos faz identificar com essa personagem tão quieta e amável com um coração genuíno.

6 – O Fim da Turnê, de James Ponsoldt

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Outro filme sobre solidão e depressão que, se à primeira vista é leve, descontraído até, é apenas por transcorrer cheio de conversas e encontros. Mas não duvide, lá no fundo ele vai deixar aquele aperto agridoce no seu coração, como só os filmes de coração genuíno conseguem.

7 – Sicario: Terra de Ninguém, de Denis Villeneuve

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Quão longe dentro da escuridão se precisa ir para combatê-la? Sicario responde a essa pergunta devagar, dando tempo para entendermos as feridas dos personagens e suas motivações. Pelo ponto de vista de Kate Macer, em uma brilhante atuação de Emily Blunt, entramos numa complicada investigação sobre os cartéis de droga do méxico, onde nada é o que parece, a linha que separa os lados do bem e do mal está difusa, e, como a protagonista, acompanhamos por boa parte do filme em sincera confusão sobre o que está acontecendo por não ser esse o mundo que habitamos. Quando Macer (e o espectador) finalmente enxerga o quadro maior de tudo pelo o que ela passou, resta-lhe apenas a visão do desespero…

8 – The Lobster, de Yorgos Lanthimos

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Um ácido (e engraçadíssimo) comentário sobre as relações afetivas no século 21, apresentada por meio de uma fábula absurda que, apesar disso, se comunica (demais) com todas as formas como encaramos o amor e a pressão da sociedade sobre ele. Falei um pouco mais aqui.

9 – Phoenix, de Christian Petzold

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Em uma poderosa performance de Nina Hoss, o filme segue a história de uma mulher que retorna dos campos de concentração com a face destruída e, assim, recorre a uma cirurgia para reconstruí-la. Ela não aparenta exatamente como antes, contudo, levando ao seu marido a não reconhecê-la. Mas uma proposta da parte dele abre as portas para que ela tente se aproximar novamente de seu marido. Petzold investiga aqui as faces da identidade em um suspense Hitchcockiano que sustenta até o fim a tensão por não ser reconhecido.

 10 – Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), de Alejandro González Iñárritu

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O filme ganhador do Oscar de 2015 dispensa apresentações. É o filme sobre um ator antes famoso por interpretar um super herói mas agora esquecido, que vê no teatro a chance de se reerguer. Semelhanças com a vida real não são mera coincidência e são parte do charme do filme. O que mais gostei é como o diretor faz conviver ao mesmo tempo a realidade de fato da narrativa com a realidade surreal e subjetiva do protagonista, vivido por Michael Keaton, garantindo umas belas cenas em que o sonho se faz valer tanto ou mais do que a vida real.

11 – O Duque de Burgundy, de Peter Strickland

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Difícil falar sobre esse… É um estudo de rigidez formal sobre como a repetição e suas variações, que não deixam de ser repetições de si mesmas, afetam um relacionamento. Um filme cheio de atmosfera que consegue captar, sutilmente, como o bater de asas de uma borboleta, o aprisionamento do desejo, o clima abafado, mistura de sonho e pesadelo, de um amor que se quer estar e fugir ao mesmo tempo.

12 – Juventude, de Paolo Sorrentino

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Uma celebração da vida, uma reflexão sobre a vida enquanto jovem e enquanto velho, os júbilos e tormentos da criação, as difíceis relações humanas… tudo isso passado com elegância e empatia à nossa frente. Um lindíssimo filme, com excelentes atuações de Michael Caine, Harvey Keitel, Paul Dano, Rachel Weisz e uma aparição rápida mas marcante de Jane Fonda.
13 – Mia Madre, de Nanni Moretti 

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Uma diretora conduz um filme sobre trabalhadores em greve frente às ameaças de demissão por um novo chefe da empresa em que trabalham. Enquanto isso sua mãe está a morrer e ela também é assaltada por memórias do passado. Trata-se de uma delicada história sobre a aceitação da partida daqueles que amamos. Um ponto de genialidade do filme é  como a recusa em se deixar ser demitido ecoa a recusa da protagonista em deixar a mãe ir. Destaque também para a atuação cheia de vida e energia de John Turturro, como o ator chato que não mede esforços para infernizar a vida dos colegas de trabalho.

14 – Chi-Raq, de Spike Lee

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Um filme cheio de energia e vida e humor e violência sobre uma medida intensa liderada pelas mulheres de Chicago (a Chi-Raq do filme) para fazer com que o crime e as matanças entre duas gangues da cidade parem e, assim, trazer paz novamente às vidas dos moradores. O Filme é de uma genialidade ímpar ao fazer uma releitura de A Greve do Sexo (também traduzida como Lisístrata), comédia grega de Aristófanes, trazendo-a para os dias de hoje enquanto mantém referências à mitologia grega e as aproveita para uni-las à cultura do rap, incorporando elementos daquela nesta, enquanto tece diálogos cheios de rima e pompa, ainda sem perder a naturalidade. Tudo envolto em um pacote de imagens absurdas que gritam mensagens de paz do melhor jeito que podem. Uma empreitada mais do que necessária, vital. (Destaque para a participação de Samuel L. Jackson, que visivelmente se entretém demais em fazer as vezes do personagem que olha diretamente para a platéia e lhes explica a história).

15 – Whiplash: Em Busca da Perfeição

Whiplash

Aquele filme quase perfeito que o envolve nas espirais da loucura do protagonista, um baterista que faz de tudo para conseguir a apreciação do seu mestre e ser o melhor músico que existe. Um filme todo energético que aproveita o delírio do jazz e o traz para a narrativa, envolvendo a audiência até o último minuto. Imperdível!

 

 

Menção honrosa a alguns outros filmes:

“Macbeth”, “Queen of Earth”, “Mistress America”, “Dois Dias, Uma Noite”, “O Ano Mais Violento”, “Timbuktu”, “Divertida Mente”, “Adeus à Linguagem”, “A Colina Escarlate”, “Star Wars: O Despertar da Força”, “Nasty Baby”, “Tangerina”, “Descompensada”, “Boa Noite, Mamãe”, “Corrente do Mal”, “Perdido em Marte”.

E foi isso, espero que esse ano seja ainda melhor. Promessas não são o que faltam: já na porta estão Os Oito Odiados, O Regresso, Carol, Spotlight, Creed, Steve Jobs, Caveleiro de Copas, Hail, Caesar, O Filho de Saul etc.

Um bom ano cinematográfico a todos 🙂